O Jornal O Estadão publicou, nesta terça-feira (25), uma matéria sobre o caso da trabalhadora doméstica Sônia Maria de Jesus. O STF pede explicações ao STJ sobre a permanência dela na residência, em Florianópolis (SC), do desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa Ana Cristina Gayotto de Borba, ambos investigados por cárcere privado e situação análoga à escravidão.
Confira na íntegra
O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu ao ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), informações atualizadas sobre o caso de Sônia Maria de Jesus, mulher negra, analfabeta, surda não oralizada e sem nenhum conhecimento da Língua Brasileira de Sinais, mantida na residência em Florianópolis (SC) do desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa Ana Cristina Gayotto de Borba, ambos investigados por cárcere privado e situação análoga à escravidão.
Representada pelo grupo Collaço Gallotti Petry Advogados, de Florianópolis, a família Gayotto de Borba não se manifesta.
No despacho publicado na última quinta-feira, 20/6, Mendonça não estipula prazo para resposta do STJ, mas destaca que “torna-se essencial, para a adequada avaliação do mérito desta impetração, verificar o estágio atual dos procedimentos em andamento perante o STJ” e “especialmente quanto à permanência ou inovação de medidas voltadas à proteção da paciente, bem assim no tocante à conclusão das investigações, o eventual oferecimento de denúncia e, caso positivo, a respectiva análise, ou não, pela Corte, da admissibilidade da acusação”.
Mauro Campbell Marques é o relator do caso no STJ e responsável pela supervisão das investigações. Foi ele quem determinou o retorno de Sônia Maria de Jesus à casa da família Gayotto de Borba, em setembro de 2023, três meses após o próprio STJ autorizar diligências, com participação de Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal e Auditoria-Fiscal do Trabalho (AFT), que constataram trabalho em condições análogas à escravidão, além de isolamento comunitário e social da mulher negra e surda.
Sônia havia sido retirada da residência da família Gayotto de Borba e encaminhada para uma unidade de acolhimento a mulheres em situação de violência doméstica em Florianópolis. Após atendimento psicológico e assistencial, cuidados médicos e odontológicos, além de exames, foram detectadas várias situações prejudiciais à saúde, como perda de dentes e infecção bucal, mioma no útero, obesidade e problemas na coluna lombar, não havia nenhuma passagem de Sônia pelo Sistema Público de Saúde (SUS) e nenhuma aplicação de vacinas.
Quando estipulou o retorno de Sônia à casa da família Gayotto de Borba, o ministro Campbel Marques argumentou que “a suposta vítima viveu como se fosse membro da família”.
Mauro Luiz Campbell Marques assume em outubro o cargo de corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o biênio 2024/2026.
O episódio 144 da coluna Vencer Limites no Jornal Eldorado, em 12/6, mostrou que, um ano após a denúncia anônima sobre violações à liberdade e aos direitos trabalhistas de Sônia Maria de Jesus, foi divulgada a íntegra da ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho e pela Defensoria Pública da União contra a família Gayotto de Borba.
Permanecem sob sigilo o processo criminal e a ação de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetivas.
O documento da ação civil pública tem 2.941 páginas e reúne depoimentos de todos os envolvidos no caso, da família Gayotto de Borba e também da família biológica de Sônia, formada por seis irmãos, sendo que cinco vivem no mesmo endereço em São Paulo onde Sônia morou até os nove anos de idade, com a mãe de todos, dona Deolina, que morreu em 2016.
Sônia Maria de Jesus completa 51 anos em dezembro. Há 40 anos, para proteger a filha das agressões do pai, dona Deolina pediu a Maria Leonor Gayotto, psicóloga voluntária na creche que Sônia frequentava, que ela abrigasse a menina por alguns dias, mas a família biológica de Sônia afirma que jamais houve acordo para que essa fosse uma residência definitiva ou para mudança a outra cidade ou outro Estado.
Oficialmente, ninguém sabe o que Sônia pensa sobre toda a situação e nem quais são os desejos dela porque ela ainda não tem um idioma desenvolvido e não tem condições de prestar depoimentos, mesmo depois de frequentar durante um ano a Associação de Surdos da Grande Florianópolis, onde aprende Libras e Língua Portuguesa, interage com pessoas surdas, faz atividade física, arte, dança, passeios e outras atividades lúdicas, de segunda-feira à quinta-feira, de manhã e à tarde.
Marta de Jesus, irmã de Sônia, afirma ao blog Vencer Limites e à coluna Vencer Limites na Rádio Eldorado que sua família está frustrada e se sente impotente.
“Não temos o mesmo recurso que eles (a família Gayotto de Borba), nosso recurso é confiar na Justiça. Sônia foi mantida em situação de trabalho análogo à escravidão, com provas contundentes, sem margem para dúvidas. Tudo está posto, ela não sabe se comunicar porque não teve acesso à educação, ela tem um mioma e perdeu dentes porque não teve direito à saúde. Ainda assim, ela permanece dentro da mesma casa na qual passou 40 anos, sem direito a nada, sem acesso ao básico”, diz.
“Não faz sentido uma pessoa que está sendo investigada, o suposto agressor, permanecer dentro da mesma residência com a vítima. Ainda que o processo tivesse sido deliberado de forma positiva para eles (a família Gayotto de Borba), durante o processo, Sônia não poderia estar dentro da casa deles, mas ela permanece lá”, comenta a irmã de Sônia Maria de Jesus.
“O que vamos fazer? A quem recorrer? Se a instância maior de Justiça, de garantia de direitos, está parada, ficamos de mãos atadas”, desabafa.
“Nos acusam de usar mídias para sensibilizar as pessoas, mas essa exposição não seria necessária se a Justiça tivesse feito o que deveria ser feito. Queremos reconstruir essa história sem esse desgaste todo para tentar garantir um direito básico dela e nosso”, completa Marta de Jesus.
Muitas questões sem resposta – O caso de Sônia Maria de Jesus expõe a precariedade dos direitos das pessoas com deficiência diante do assistencialismo e da ausência de acessibilidade, e levanta muitas questões ainda sem resposta porque a ação criminal e o processo de paternidade permanecem sob sigilo.
Sônia quer sair da casa onde está atualmente e viver com a família biológica? Ninguém tem essa resposta porque o direito nacional e internacional sobre trabalho escravo e pessoas com deficiência usa o conceito de vontade informada e amparada. E não é possível para Sônia, ainda, tomar essa decisão ou sequer expressar sua vontade com independência.
A grande dificuldade em obter de Sônia Maria de Jesus qualquer afirmação de vontade, mesmo com todo o acompanhamento e tratamento que recebe, também levanta suspeita sobre uma possível deficiência intelectual jamais avaliada e, por consequência, nunca submetida a recursos específicos de comunicação.
Sonia é ou não civilmente capaz? Se ela tem família biológica e não há nenhuma questão financeira, nenhuma posse ou herança, porque Sônia permanece na casa da família Gayotto de Borba e não é enviada de volta à residência da família biológica?
Essa família biológica desconhecia o paradeiro de Sônia há décadas e soube da situação dela por meio dos auditores que a encontraram. Dona Deolina, a mãe de Sônia e de seus seis irmãos, recebeu muitas pistas falsas e nunca parou de procurá-la. A família chegou a pensar que ela teria construído a própria vida sozinha ou até que havia morrido.
Relatório cronológico do movimento #SôniaLivre
6/6/2023 – Superior Tribunal de Justiça (STJ) determina diligências na residência da família Gayotto de Borba, em Florianópolis (SC), com participação de Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal e Auditoria-Fiscal do Trabalho (AFT), que constatam trabalho em condições análogas à escravidão e isolamento comunitário e social de Sônia.
9/6/2023 – Sônia Maria de Jesus é retirada da residência da família Gayotto de Borba e encaminhada para unidade de acolhimento a mulheres em situação de violência doméstica em Florianópolis. Após atendimento psicológico e assistencial, cuidados médicos e odontológicos, além de exames, foram detectadas várias situações prejudiciais à saúde de Sônia Maria de Jesus, como perda de dentes e infecção bucal, mioma no útero, obesidade e problemas na coluna lombar. Também verificou-se que não havia nenhuma passagem de Sônia pelo Sistema Público de Saúde (SUS) e nenhuma aplicação de vacinas.
5/9/2023 – Ajuizado habeas corpus pela Defensoria Pública da União contra decisão do ministro Campbel Marques, que autorizou o retorno de Sônia para a casa em que foi resgatada, e indeferida a liminar (HC 232.303) pelo Ministro André Mendonça.
6/9/2023 – Primeiro encontro de Sônia Maria de Jesus com a família Gayotto de Borba e advogados.
Fonte: Estadão.
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